“Ainda temos grandes obstáculos burocráticos”
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É um dos temas que mais tinta fez correr nos últimos meses: afinal, a Inteligência Artificial veio para ajudar-nos ou prejudicar-nos? Neste artigo, saiba o que o Dr. Nuno Cintra, Presidente do Conselho Científico e Diretor Clínico do Grupo OralMED Saúde, tem a dizer sobre a forma como os avanços tecnológicos têm entrado no setor da Medicina Dentária. E conheça a visão do Cirurgião Oral sobre as consequências da introdução de IA ao nível dos serviços prestados. Tanto para os pacientes, como para os profissionais de Saúde Oral.
Qual a importância da tecnologia para a medicina dentária?
- A grande maioria das pessoas não gosta de ir ao médico dentista. Muitas têm traumas de infância ou experiências menos agradáveis, que fazem com que a ida a consultas continue a ser algo desconfortável. Felizmente, a evolução tecnológica em algumas áreas da medicina dentária tem feito com que muitos doentes consigam superar alguns desses traumas. E tem permitido que aqueles que iniciam tratamentos o façam de uma forma mais confortável e amena.
Por outro lado, os doentes, hoje em dia, querem e valorizam muito o imediato. Ou seja, querem alcançar o resultado sem ter de passar por muitas fases de tratamento. E desejam conhecer antecipadamente o resultado que será obtido. Algo que em certos atos clínicos já é possível devido ao desenvolvimento tecnológico.
Julgo que um dos maiores avanços tecnológicos dos últimos anos, na medicina dentária, está relacionado com o processamento digital de imagem. Não há muitos anos, tínhamos de recorrer a slides para documentar os casos, ou revelar películas de raio-x, o que deixou de acontecer com a digitalização e ainda mais com o 3D, que nos permite, em segundos, ter acesso a um leque de informação essencial, quer no diagnóstico, planeamento e previsão de resultados, bem como em termos académicos e de ensino.
Como é que os últimos avanços tecnológicos se inserem na sua prática clínica?
- Desde logo em aspectos simples como na utilização de câmaras intraorais para visualização de zonas de difícil acesso, monitorização dos sinais vitais de doentes sob sedação consciente, na utilização de lasers para a bio-estimulação, na avaliação da osteointegração de implantes por ondas electromagnéticas ou na utilização de microscópios cirúrgicos.
Visto dedicar-me em exclusivo à cirurgia oral, a tomografia é hoje um exame obrigatório no diagnóstico e planeamento da maioria dos casos, o que permite ter uma abordagem mais segura e concreta das situações a encontrar no decorrer da cirurgia. Principalmente, em termos anatómicos. Ainda relacionado com a evolução do tratamento de imagem, a impressão em 3D veio melhorar e introduzir novas técnicas na cirurgia oral, tais como a cirurgia guiada ou a possibilidade de fabricação de implantes à medida das condições anatómicas do doente, os chamados implantes individualizados. Estes, utilizados para a reabilitação dentária em casos sem condições para a colocação de implantes convencionais, ou de reconstrução anatómica pós-traumática, fazem parte da minha prática clínica. E vieram substituir outras técnicas que envolviam maiores riscos e complicações, bem como a necessidade de maior número de intervenções.
"Para existir avanço tecnológico tem de existir investimento por parte da indústria."
Ao nível específico da Inteligência Artificial (IA), qual tem sido o papel desta tecnologia em Medicina Dentária?
- A IA tem vindo aos poucos a ser inserida em várias dimensões da Medicina Dentária. Sendo a radiologia digital, talvez, a principal. Bem como todo o processamento de imagem, desde os scanners intraorais à impressão 3D. Esta tendência e as ferramentas atualizadas acompanham a evolução de softwares sempre mais intuitivos, possibilitando o planeamento digital e cada vez mais imediato.
A IA permite a automatização de tarefas e procedimentos que até então só eram realizados e cumpridos manualmente, e que agora permitem auxiliar nos processos de diagnóstico. Não só de patologias, mas também na elaboração dos planos de tratamento e na previsibilidade dos mesmos.
A IA pretende alavancar dados médicos na prestação de atos clínicos mais personalizados, preventivos e minimamente invasivos. Conseguindo performances mais eficientes e previsíveis.
Estas ferramentas agilizam e otimizam os protocolos cirúrgicos, já que permitem, quase sempre, a visualização do resultado previsto é expectável antes da execução do tratamento proposto. Algo que facilita também a comunicação com o paciente. De uma forma mais elementar, as próprias escovas elétricas, através dos seus sensores de pressão e dos guias de escovagem, contribuem para a emersão constante da tecnologia na saúde oral e na criação de padrões ideais de escovagem.
Aplicações, plataformas, softwares permitem, igualmente, a integração da IA na prática clínica, como por exemplo a base de dados que temos à nossa disponibilidade em casos de dificuldade de rastreabilidade de implantes dentários. Através da leitura de um raio-x do implante é possível a identificação do seu sistema/marca. O próprio motor de implantes é cada vez mais diferenciador, calculando velocidade, potência e torques.
No caso dos dados médicos, de que forma são obtidos e utilizados?
- A utilização, cada vez mais frequente, de radiografias digitais e scanners intraorais, é uma enorme fonte de dados que podem ser analisados e processados, embora muitas questões éticas se coloquem sobre a obtenção e tratamento desses dados. Em algumas áreas da medicina dentária já utilizamos software, quer no planeamento quer na tomada de decisão clínica. Estou certo que, com o desenvolvimento destes, em breve teremos algoritmos para analisar dados de casos clínicos, técnicas de tratamento e resultados de investigação científica, que permitam encontrar as melhores modalidades de diagnóstico e tratamento individual. Bem como relacionar a saúde oral com a saúde geral do doente.
"Na minha opinião, não nos devemos deixar influenciar por descobertas fabulosas sem estas estarem cientificamente comprovadas e justificadas."
Que benefícios e malefícios reconhece na introdução de novas tecnologias na Medicina Dentária?
- As mais valias estão, na minha opinião, relacionadas com a introdução de novas técnicas e tratamentos, diminuição de riscos e complicações, maior previsibilidade dos atos e capacidade de responder às expectativas do doente de uma forma mais simples, mais rápida e menos intervencionista. Por outro lado, o ritmo a que a tecnologia avança, obriga-nos a estar em constante formação e a dedicarmo-nos, cada vez mais, a áreas específicas. Valorizando a especialização, o que sempre defendi.
Acredito que num futuro próximo existam subespecialidades, com colegas a dedicarem-se em exclusivo às mesmas, o que, aliás, já acontece, por exemplo, na regeneração óssea.
As menos valias, tal como em outras áreas profissionais, são, a meu ver, o facilitismo e a generalização de determinados atos ou tratamentos. Estes, quando efetuados por colegas não habilitados, e em casos sem indicação, podem trazer consequências graves para o doente, muitas delas iatrogénicas. Tal acontece não só na cirurgia oral, mas também em outras especialidades da medicina dentária. É o caso da harmonização facial que é, sem dúvida, uma grande mais valia na correcção de defeitos anatómicos específicos, mas que, infelizmente, está a ser utilizada em casos sem qualquer tipo de indicação terapêutica, com consequências que começam a ser cada vez mais evidentes. O mesmo acontece com os alinhadores dentários que, tal como o próprio nome indica, servem para alinhar pequenos defeitos e não corrigir. Podendo levar a sequelas patológicas graves a nível articular, por exemplo.
Para existir avanço tecnológico tem de existir investimento por parte da indústria. E esse investimento tem como objetivo primário o retorno financeiro. É simples, é o mercado a funcionar. Contudo, muitas evoluções são preferidas em relação a outras com base em fatores meramente económicos. O que em saúde pode não ser o mais benéfico para os doentes. Por exemplo, muito se investiu na prevenção, diagnóstico e reabilitação do cancro oral, mas em termos de tratamento cirúrgico continuamos a utilizar técnicas profundamente intervencionistas e debilitantes para o doente.
"[...] ainda temos grandes obstáculos burocráticos, com uma Ordem a funcionar discricionariamente, em que uns podem anunciar livremente na comunicação social e outros defrontam-se com constrangimentos, como a impossibilidade de informar os seus doentes das suas inovações tecnológicas."
Na sua opinião, qual será o próximo grande avanço que marcará o setor?
- Julgo que a regeneração dentária com a manipulação de células estaminais, a ser possível, - visto que o dente é constituído por diferentes tecidos, - será um dos maiores desenvolvimentos na medicina dentária. Estão a ser realizados estudos em que o esmalte do dente, ou mesmo o dente no seu todo, poderá ser substituído pelo crescimento da dentina, bem como estimular o crescimento de vasos sanguíneos e polpa dentária.
Contudo, ainda há muito que evoluir. Por exemplo, conquanto seja possível o bloqueio transcutâneo de alguns nervos, continuamos a ter de usar agulhas para anestesiar, a ter usar técnicas de sutura introduzidas no século XVI, embora existam lasers com capacidade de corte. Mesmo que não substituam por completo as brocas, sendo mais silenciosos, ainda não conseguimos abolir por completo o ruído das turbinas. Todos estes aspetos continuam a influenciar e a traumatizar alguns doentes. E, comparados com a evolução tecnológica que tem acontecido, parecem desenvolvimentos básicos. Mas, por razões muitas vezes alheias à ciência, ainda se mantêm.
Que outros obstáculos reconhece à implementação de novas tecnologias?
- Ao ritmo que a tecnologia avança, torna-se difícil acompanhar e estar em constante formação para nos mantermos atualizados. Na minha opinião, não nos devemos deixar influenciar por descobertas fabulosas sem estas estarem cientificamente comprovadas e justificadas. Principalmente, num grupo com a dimensão do Grupo OralMED Saúde, onde a implementação de algo novo no universo de cerca de 60 clínicas, geralmente implica grandes investimentos. Tudo tem de ser bem analisado e ponderado para não corrermos o risco de introduzir técnicas, procedimentos ou dispositivos que, no imediato, podem fazer sentido, ficarem completamente desatualizados ou desenquadrados na nossa filosofia e método de trabalho. Daí a existência do conselho científico no grupo, onde, entre outros estes temas, são analisados e ponderados de acordo com as nossas necessidades. Sempre com o objetivo de entregar o melhor para o doente.
Por outro lado, ainda temos grandes obstáculos burocráticos, com uma Ordem a funcionar discricionariamente, em que uns podem anunciar livremente na comunicação social e outros defrontam-se com constrangimentos, como a impossibilidade de informar os seus doentes das suas inovações tecnológicas. Do mesmo modo, sentimos desajustamentos provenientes da tutela: após investimento em tecnologia e respectiva formação qualificada, implementa inspeções com taxas e custos acrescidos sobre tecnologia e procedimentos mais que devidamente testados e aprovados internacionalmente, como no caso da radiologia.
A evolução tecnológica bem como a IA são e serão, num futuro próximo, uma grande mais valia para todos nós, médicos dentistas, mas tem de o ser principalmente para o doente. Quer em termos de diagnóstico e planeamento, quer, acima de tudo, no tratamento e gestão de expectativas.
Sobre o Grupo OralMED Saúde
Recorde-se que as clínicas OralMED Medicina pertencem ao Grupo OralMED Saúde, o primeiro grupo português especializado em Medicina Dentária. Com 13 anos de experiência e líder no setor, tem já mais de 60 unidades clínicas próprias, quatro laboratórios, uma academia de formação, e conta com cerca de 1200 colaboradores diretos e indiretos e com os serviços de mais de 400 médicos dentistas.
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